Em vigor apenas no Afeganistão e Jordânia, sistema eleitoral de voto majoritário tem apoio do vice-presidente do Brasil
A proposta de reforma do sistema eleitoral com mais chance de ser aprovada atualmente na Câmara dos Deputados é também a mais criticada por especialistas e até por muitos políticos.
Está agendada para esta terça-feira a votação, em uma comissão especial, do relatório final da proposta, cujo ponto principal é a mudança na forma como votamos em deputados federais e estaduais: o atual sistema proporcional seria substituído por um majoritário, o chamado “distritão”. O sistema é simples: seriam eleitos os deputados mais votados em cada Estado.
Entre os principais defensores do modelo estão o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e o vice-presidente Michel Temer (PMDB-SP). Mas o próprio relator da comissão especial da reforma política, o deputado federal Marcelo Castro (PMDB-PI), opina que o sistema é “pior do que o que temos hoje” e agravará os problemas políticos do país.
Se aprovado na comissão especial, o relatório vai a votação no Plenário da Câmara. Entenda, ponto a ponto, a possível mudança política e por que ela causa tanta polêmica.
Como votamos hoje?
Hoje, a eleição de deputados federais e estaduais é proporcional: para ser eleito, o candidato depende não apenas dos votos que recebe, mas também dos votos recebidos pelo partido ou coligação. Os assentos parlamentares são distribuídos conforme essa votação partidária.
O sistema, porém, traz incongruências: um candidato com votação significativa pode acabar não sendo eleito caso seu partido não atinja o chamado “quociente eleitoral”; e um candidato que não receba tantos votos assim pode acabar sendo eleito caso seu partido tenha um “puxador de votos”, ou seja, um candidato muito bem votado que acabe elevando o quociente partidário de sua coligação.
É o que ficou conhecido como “efeito Tiririca”, quando o candidato a deputado Tiririca (PR-SP) conquistou 1,3 milhão de votos e carregou consigo outros três candidatos menos votados de seu partido à Câmara dos Deputados.
O que mudaria?
A proposta em discussão na comissão especial da Reforma Política propõe trocar o sistema proporcional pelo majoritário: entre os candidatos, seriam eleitos os receptores do maior número de votos. No Estado de São Paulo, por exemplo, que tem 70 cadeiras na Câmara, seriam eleitos os 70 candidatos com o maior número de votos individualmente.
Defensores do sistema argumentam que ele é simples de ser entendido e aplicado, reduzirá o número de candidatos e acabará com a figura dos “puxadores de voto”.
“(O sistema) segue o princípio constitucional de eleger os candidatos mais votados”, disse recentemente em evento o vice-presidente Michel Temer (PMDB).
“Só se candidatará quem souber que tem chance de se eleger. Isso vai diminuir sensivelmente o número de candidaturas de cada partido e tornará a fala dos candidatos mais programática.”
Em artigo ao jornal O Estado de S. Paulo, o vice-presidente afirmou que “hoje o sistema proporcional prestigia o partido político em detrimento da vontade da maioria popular”.
Mas o modelo “distritão” – que atualmente vigora apenas no Afeganistão, na Jordânia e em alguns pequenos países insulares – é também um dos mais criticados por especialistas e até por parte da classe política. Muitos acreditam que o modelo traz problemas ainda maiores do que os do sistema proporcional atual.
“(O modelo) não é usado por nenhuma democracia consolidada, então inclusive há poucos casos concretos para se estudar na ciência política”, diz à BBC Brasil Yuri Kasahara, doutor em ciência política pelo Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e pesquisador de estudos internacionais e de América Latina no Instituto Norueguês de Pesquisas Urbanas e Regionais. “O Japão chegou a adotar o modelo no pós-guerra, mas mudou no final dos anos 1980.”
O relator da comissão de reforma política, deputado Marcelo Castro, diz que, entre os cientistas políticos e especialistas ouvidos pela comissão especial, nenhum recomendou a adoção do sistema majoritário.
Quais são as críticas ao ‘distritão’?
A primeira crítica é de que a mudança beneficiaria os candidatos já conhecidos do grande público, capazes de atrair grande número de votos, em detrimento de candidatos novos ou representantes de minorias, por exemplo.
E, ao mesmo tempo em que o modelo daria força aos candidatos individualmente, tenderia a enfraquecer os partidos. “O sistema favorece a personalização das campanhas, porque o que conta é o desempenho dos candidatos individualmente”, diz Kasahara.
“Isso acabaria com qualquer incentivo ao esforço (partidário) coletivo e com o voto na legenda. Os partidos seriam incentivados a apresentar candidatos com forte base regional, apelo individual e posições extremas e capacidade de arrecadar fundos. Se favorece a individualização, enfraquece ainda mais a ideia de uma campanha séria e baseada em propostas. Acredito que haverá uma queda na qualidade do debate eleitoral.”
Ele acha que o próprio partido terá dificuldades em coordenar sua campanha para eleger o maior número possível de candidatos.
“Será que um candidato que tem potencial de receber 50 mil votos será eleito? E o eleitor também terá dificuldades. Sei que o candidato A não é tão popular. Voto nele mesmo assim (e corro o risco de desperdiçar o voto)? Ou voto no B, que é superpopular e sei que ele será eleito de qualquer forma?”. Isso leva à segunda crítica: o desperdício de votos.
Teme-se que reforma política enfraqueça ainda mais os partidos ao privilegiar a força de candidaturas individuais
“Quando se fala que o distritão é um bom sistema, pois garante a eleição dos mais votados, cabe perguntar para onde vai o voto de milhões de eleitores que votaram em nomes que não se elegeram. Seriam simplesmente jogados fora”, escreveu em artigo à Folha de S. Paulo o cientista político Jairo Nicolau, professor da UFRJ.
No sistema atual, só se perdem os votos em candidatos cujos partidos não elegeram ninguém.
“Hoje, como votamos em partidos, praticamente todos os nossos votos são aproveitados (na determinação do equilíbrio de forças do Legislativo). É uma característica do sistema proporcional que se perderia”, explica Kasahara.
O ‘distritão’ vai reduzir custos de campanha e número de partidos?
O vice-presidente Michel Temer diz que sim, sob o argumento de que os partidos serão mais seletivos quanto ao número de candidatos (já que o sistema privilegia os de grandes votações). Isso levaria à redução dos custos de campanha e do número de partidos. Mas não há consenso a respeito.
O relator do projeto, Marcelo Castro, acredita que o modelo incentiva campanhas mais caras – já que até mesmo candidatos do mesmo partido terão de disputar votos entre si – e isso tornaria os partidos ainda mais pulverizados.
“Se hoje os partidos não valem nada, isso vai se acentuar”, disse Castro à BBC Brasil. “Vamos ter 50 partidos no futuro (pelo fato de o modelo favorecer a personalização em torno do candidato, em vez do partido), criando uma ingovernabilidade no país.”
E se o ‘distritão’ tivesse valido nas últimas eleições?
O pesquisador Márcio Carlomagno, da UFPR, simulou como teria ficado a Câmara dos Deputados caso o sistema “distritão” tivesse valido nas eleições do ano passado, em vez do proporcional.
A mudança não teria sido tão drástica: 45 cadeiras de 513 (ou 8,77%) seriam ocupadas hoje por outros deputados federais, que não os que entraram pelo atual sistema proporcional.
O modelo também teria mudado pouco a configuração partidária: alguns partidos grandes teriam ganho no máximo 5 cadeiras; alguns pequenos teriam perdido ou ganhado uma cadeira.
“A chamada ‘distorção’ do atual sistema seria de apenas 8,77%, se comparado ao novo sistema proposto. Então podemos dizer que o ‘distritão’ está propondo resolver um problema que praticamente não existe”, explica Carlomagno.
“O atual sistema já dá conta que, em sua larga maioria, os mais votados sejam os eleitos. O chamado ‘fenômeno Tiririca’ é uma pequena exceção, não a regra.”
O ‘distritão’ é o mesmo que voto distrital?
Não exatamente, apesar de ambos serem modelos de voto majoritário. No sistema distrital puro, adotado em países como Reino Unido, o país é dividido em pequenos distritos, e cada um deles elege um representante ao Parlamento. Os partidos postulam um candidato por distrito e somente o vencedor da eleição conquista a cadeira.
No “distritão”, cada Estado seria considerado um grande distrito, cada qual com seu número pré-determinado de assentos na Câmara. São Paulo, por exemplo, seria um distrito com 70 cadeiras.
Que outros modelos existem?
O modelo mais defendido por especialistas costuma ser o distrital misto de inspiração alemã. Neste, metade da Casa é eleita pelo voto distrital – em que vence o candidato mais votado em cada região – e a outra metade é escolhida proporcionalmente pelo voto no partido. No Brasil, a proposta é historicamente defendida pelo PSDB e ganhou apoio do PT.
Outro modelo existente (e inicialmente defendido pelo PT) é o sistema proporcional de lista fechada, em que vota-se apenas no partido – e cada partido oferece uma lista de candidatos que serão eleitos de acordo com a votação recebida pela legenda.
Kasahara explica que esse modelo é usado em alguns países europeus, como a Noruega, mas com lista semiflexível, em que o eleitor pode propor mudanças na ordem de candidatos apresentada pelos partidos.
Além do sistema eleitoral do Legislativo, o que está em debate na reforma política?
Outros pontos principais que são parte do relatório a ser votado nesta terça são o possível veto à reeleição de presidentes, governadores e prefeitos; o mandato de cinco anos para cargos eletivos; limites para gastos de campanha; cláusula de desempenho (só partidos que tenham recebido no mínimo 2% dos votos válidos à Câmara teriam direito a dinheiro do fundo partidário e propaganda gratuita de rádio e TV); entre outros itens.
Fonte: Último Segundo