Restaurar relações, a coisa certa a fazer

Tradicionalmente quando temos algum conflito, a primeira coisa que queremos é resguardar nossos direitos, e o que nos move não é exatamente a reparação do dano, é algo que está para além de qualquer diálogo, aliás, tudo que não se quer é conversar. Acredita-se que o que se quer é que o outro sinta a mesma dor. A ofensa que acreditamos ter sofrido, nos invade, nos avassala.  É por este sentimento que nossa justiça tem caminhado, pela culpabilização e pela imputação de pena, como modo de dirimir conflitos e culpabilizar o ofensor, seja com restrição de liberdade ou com pena pecuniária.

O problema é que quando invocamos a lei desconhecemos a abrangência e eficácia que ela poderá ter na sua consecução, que se dá por meios e métodos de exclusão e coerção, visando reprimir supostas condutas julgadas inadequadas. Esta repressão, além de, na maioria dos casos, não conseguir ocasionar uma mudança nos envolvidos, pode gerar um aumento do conflito e ter dimensões maiores do que quando surgiu originalmente.

Nossa vivência de justiça passa pelo aculturamento de soluções de problemas onde aquele acolhido pela lei é aquinhoado com o bônus da culpa e a violência do outro que será desprezado com a pena e os juros do conflito.

Na tradição Maori, tribo da Nova Zelândia, os conflitos possuem outra dimensão. Esses nativos oriundos da Polinésia “povo de origem” daí a denominação Maori, compõe 14% da população da Nova Zelândia, estão em todo território, mas se concentram mais ao norte do país.

Pela tradição Maori quando algum conflito surge, a tribo se reúne e senta-se em círculo para discutir os motivos do conflito e as necessidades que devem ser atendidas para reparação do problema e do dano causado. Essa roda de conversa utilizada pelos indígenas constituía-se em um pedaço de madeira, um bastão, sendo passado de mão em mão, só falando a pessoa que está com ele, um refino de escuta, que não poderia ter interferência de ninguém enquanto aquele que estivesse com a palavra, o objeto na mão, não terminasse de falar. Este procedimento do qual toda a comunidade Maori participava, era uma forma de diálogo, em que “vítima e o ofensor” eram chamados a se responsabilizarem pelo conflito e dano causado e pudessem repará-lo, trazendo novamente paz à tribo.

Esta forma não distributiva e não penalista, onde a culpa não encontra esteio, foi adotada pelo poder judiciário da Nova Zelândia inicialmente nos conflitos ocorridos com os jovens e adolescentes que praticavam ou sofriam violência naquele país.

A Justiça Restaurativa como passou a se chamar este sistema de solução de conflitos, não é mais um atributo da tribo Maori e nem da Nova Zelândia, a prática ganhou o mundo e os países que se apropriaram, fizeram recortes desta linha de ação mediadora não compulsória e nem punitiva, em que as partes interessadas buscam a solução de seus conflitos baseadas em suas possibilidades de reparação do dano sofrido sem que a culpa ou a pena sejam partes centrais nesta relação. O que se quer é restaurar as relações dos sujeitos que sofreram cisão em razão do conflito.

No Brasil esta prática tem caminhado lentamente, e há 10 anos foi introduzida pelo Rio Grande Sul, se expandindo para o Distrito Federal, Bahia e para o Rio de Janeiro na condução de conflitos com crianças, adolescentes e jovens.

Este novo formato de solução de conflito não impede que o poder judiciário continue com suas atividades, mas possui ritos diferenciados. A Justiça Restaurativa tem como método buscar a responsabilização do ofensor, sem que com isso deixe de se prestar auxílio e apoio à vítima, acolhendo-a em sua perda ou dano, elaborando junto com ela a ressignificação desta dor sofrida, atentando para que quando o conflito se estabelece a qualidade das relações se comprometem e se desgastam.

É nesse encontro do antigo com o moderno, das tradições com o que já está posto, que nasce o diferencial na convivência cotidiana, individualizando os conflitos e particularizando o cuidado com as relações em que as leis que hoje existem, mais atrapalham do que ajudam. Um sistema judiciário abarrotado de processos e técnicos que não conseguem dar destinos apaziguadores às contendas existentes, e como dizem os nativos Maoris, responsabilizar e restaurar as relações, é a coisa certa a fazer.

Por Márcia Ferreira (Vice-presidente do SINFA-RJ)

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