Um ‘equívoco’ se juntou a um ‘tema banal’, que se uniu a ‘uma piada’, avalia Jairo Nicolau (UFRJ)
POR ALESSANDRA DUARTE
RIO — Um “equívoco” se juntou a um “tema banal”, que se uniu a “uma piada” — e fez-se a reforma política aprovada pela Câmara, avalia Jairo Nicolau, professor de Ciência Política da UFRJ. Nessa colagem de mudanças — que ainda serão votadas em segundo turno e depois vão ao Senado —, Nicolau diz que uma delas, a doação a partidos, não mais a candidatos, deve alteraras relações políticas no país.
Qual a impressão deixada por esta reforma aprovada em 1º turno na Câmara?
Quando os trabalhos começaram na comissão da reforma, seguiam o rito, com reuniões, audiências, e com um relatório para ser a peça-base das votações. Com o não reconhecimento desse relatório, foram semanas de temas que não tinham nada a ver um com o outro. Desde a redemocratização, não tinha havido um esforço concentrado para tratar de reforma política, foi um momento inédito. Não digo que ele foi desperdiçado, mas foi atabalhoado. Os dirigentes dos partidos estavam confusos, despreparados para encaminhar as votações. Havia temas pouco relevantes, como mudança de idade mínima para parlamentares, que apareciam próximos de questões fundamentais, como o fim do voto obrigatório, que apareceu de forma surpreendente e que, se tivesse sido aprovado, teria sido mais impactante que o fim da reeleição.
Foi uma reforma política Frankenstein?
Os temas iam aparecendo e iam caindo, né? Os assuntos entravam um depois do outro sem uma hierarquia de prioridades, sem parâmetro. É o que acontece quando você deixa uma votação ao sabor de um plenário. Fica ao sabor dos humores. O que vimos foi uma série de votações desconexas. Faltava unidade naquilo. “Agora, idade mínima.” Por que votar idade mínima? O que isso tem a ver? “Agora, fim do voto obrigatório.” Depois vinham uns deputados e rezavam um Pai-Nosso. Pronto, acaba o voto obrigatório, agora reza um Pai-Nosso.
Houve quem dissesse que, se não tivesse sido assim, a reforma, mais uma vez, não teria saído.
Não concordo. Não conheço reforma de sistema político-eleitoral que não tenha sido feita com base num relatório. A do Japão, nos anos 1990, teve uma comissão; a da Itália e a da Nova Zelândia, no mesmo período, teve consultas. Não sei se o que tivemos foi uma jabuticaba. O encaminhamento foi incomum. E não se quer uma reforma pela reforma. Qualquer um que faz uma reforma em casa tem algum objetivo. Que reforma foi feita? No final das contas, foi acabar com reeleição e mudar calendário. Isso melhora a qualidade da representação no país? Acho que tem impacto pequeno.
Por que a reforma ocorreu desse modo?
O motivo para ter sido assim foi circunstancial. Absolutamente. Tem a ver com o estilo decisório do atual presidente da Câmara. Poderíamos ter tido um relatório como guia. Mas o deputado Eduardo Cunha deve ter desejado colocar no seu legado que ele fez a reforma política. Talvez por conta disso, levou a plenário temas ainda não maduros nem entre os parlamentares, nem entre especialistas. O menos amadurecido, a grande surpresa, foi a análise do voto facultativo. Já o prazo para desfiliação (sem perda de mandato) foi uma decisão casuística.
A mudança sobre os projetos de iniciativa popular pode estimular a vinda de um maior número de projetos do tipo?
Pode ser um estímulo, mas não creio que faça tanto efeito. Não é difícil uma associação procurar um deputado e lhe pedir um projeto de lei. O mecanismo da iniciativa popular é pouco usado no país, e a ideia ali é mais para passar imagem de mobilização sobre um tema do que para produção legislativa. Essa foi uma mudança neutra. Num modelo representativo, a mobilização tem de ser mais para acompanhar o que faz seu representante do que para a própria sociedade legislar. Outra mudança neutra: a questão dos policiais e bombeiros (voltarem à ativa após o mandato). Mais um particularismo na Constituição. Outro totalmente particularista: a mudança da idade mínima. Um tema banal que parou na Constituição, assim como a mudança da data da posse. Já o acesso ao Fundo Partidário, do jeito que ficou (pouco rigoroso), é uma piada.
E a emissão de recibo em papel nas urnas eletrônicas?
Acho um equívoco. Tolice, desconhecimento. A urna eletrônica é um sucesso do ponto de vista da segurança. Quem teve a oportunidade de conferir o sistema viu sua confiabilidade. Essa mudança (o registro em papel) vai trazer mais confusão do que vantagem. Todo mundo que tem impressora sabe que às vezes ela dá problema. E não vai ser só problema mecânico, não. As pessoas votam errado, se atrapalham, votam na legenda quando queriam votar em um candidato. Quando forem conferir no papel, vão se dar conta (de que se atrapalharam), vai ter confusão. Além disso, pode levar a novo tipo de controle do voto, novo cabresto, porque o eleitor pode tirar foto do recibo pelo celular. Uma coisa é foto da tela da urna, o eleitor pode alterar o voto depois de tirar a foto; foto do recibo em papel é uma prova maior.
O que achou do fim da reeleição?
Gosto da ideia da reeleição. Já houve estudos mostrando que a continuidade administrativa auxiliou a implementação de políticas. Temos casos em que o segundo mandato foi melhor que o primeiro. Claro que também houve muito abuso (do candidato à reeleição, que tinha a máquina administrativa a favor), mas acho que isso poderia ser corrigido, por exemplo, com a licença do cargo durante toda a campanha. Se a presidente Dilma tivesse se licenciado de julho até o 2º turno, todos os deslocamentos dela pelo país teriam de ter sido bancados pelo partido. Além disso, candidatar-se à reeleição não significa que você vai ganhar. Muitos perdem: a taxa de reeleição dos Executivos no Brasil é de cerca de 60%. O que motivou o fim da reeleição não me parece ter sido a vontade de aperfeiçoar, mas, sim, aumentar as chances de se entrar no jogo. O rodízio interessa. Quantos políticos do Rio não viram a carreira suspensa pelo fato de o Eduardo Paes ficar 8 anos (como prefeito)? E aí, quando acabaram com a reeleição, tiveram que aumentar o mandato para 5 anos. Podiam ter mexido com o mandato só dos Executivos; mas a não coincidência das eleições é ruim para os políticos. Se o governante está mal no primeiro ano, o desgaste dele afeta a eleição dos parlamentares do seu partido. Imagina neste primeiro ano do segundo governo Dilma, como se sairiam os deputados petistas se houvesse eleição para a Câmara? E, em campanhas coincidentes, uma campanha ajuda a outra. Agora, quando chegar ao Senado, se derrubarem os 5 anos, voltaremos ao pré-88: quatro anos, o que é pouco para o Executivo.
Qual a mudança mais importante?
A mais importante para a democracia brasileira, por incrível que pareça, foi a permissão de doações de empresas a partidos. Inicialmente, teve gente que ficou pessimista, eu mesmo. Parecia um contrassenso em relação ao movimento atual contra a corrupção entre empresas e campanhas. Mas, depois, me dei conta de que isso pode mudar a relação entre empresas e políticos. Porque as empresas terão de passar pelo filtro do partido. Hoje, a empresa doa na mão do cara. Ela tem certeza de que o dinheiro vai para quem ela quer, e isso não tem a ver com o partido, tanto que a mesma empresa doa a candidatos de diferentes correntes. Se tiver que doar ao partido, e não ao candidato, vai ter que negociar, isso vai dar mais peso aos dirigentes partidários. Comparando com o que temos hoje, vai ser melhor. Mas o mais importante mesmo, de tudo que votaram na Câmara, foi o que não aprovaram: o distritão e o fim do voto obrigatório. A melhor reforma foi aquela que não houve.
Fonte: O Globo