A ideologia é um delírio

Por Murilo Cleto*

 

A ideologia tornou-se mecanismo de desautorização de discurso e suspensão de debates. Tem servido pra escancarar os mais íntimos preconceitos

 

Ela não nasceu hoje, mas nunca esteve tão presente quanto agora. Invenção do século XIX, a “ideologia” circula pelo imaginário contemporâneo como um interruptor, acionado conforme conveniência pra suspender qualquer transformação a ela relacionada. Exemplos recentes não faltam: “Projeto de lei quer criminalizar o assédio ideológico nas escolas“, “O perigo da ideologia de gênero nas escolas“, são dois exemplos de chamadas que pululam pelos portais de notícias. Nas redes sociais, “ideologia” é adjetivo pesado e tem servido para alertar os demais sobre a quebra de algum valor importante.

 

Para se ter uma ideia da eficiência do “aparelho anti-ideológico” na questão do gênero, por exemplo, 8 estados retiraram dos seus respectivos planos de Educação qualquer menção a identidade, diversidade eorientação sexual. No ano passado, o Plano Nacional da Educação já havia sido aprovado seguindo a mesma tendência.

Agora são os municípios que, sob forte pressão da bancada conservadora do Congresso e das igrejas, estão excluindo o item dos textos convertidos em projeto de lei. Somente dois dias depois de publicado, o vídeo do deputado Magno Malta (PR-ES) que conclamava a população a pressionar vereadores que admitissem essa “ideologia” teve mais de 50 mil compartilhamentos no Facebook.

 

Curiosamente, no entanto, o destempero daqueles que dizem “não à ideologia de gênero nas escolas” pode ser explicado tanto pela própria ideologia quanto pelas diferentes formas de apropriação do conceito ao longo dos tempos, em especial a mais recente, que não é tão nova assim, mas que dialoga com os grandes paradigmas da contemporaneidade.

 

O termo “ideologia” foi citado pela primeira vez em 1801 por Destutt de Tracy em Eléments d’Idéologie, uma obra de caráter médico que pretendia elaborar uma espécie de genealogia das ideias, entendidas como uma junção entre o corpo humano e o meio ambiente.

 

Liberais, antiteológicos, antimetafísicos e antimonárquicos, os ideólogos liderados por De Tracy acreditavam que poderiam, com isso, construir ciências morais tão exatas quanto as naturais, cujo objetivo principal era o desenvolvimento de um “bom espírito”, capaz de compreender os fatos longe de especulações dogmáticas. Cabanis, um deles, defendia que o cérebro poderia sobrepor-se ao restante do organismo, condição necessária pro alcance do progresso.

 

E não demorou muito pra que a expressão fosse utilizada de modo pejorativo. Em 1812, Napoleão Bonaparte, depois de perder o apoio dos ideólogos graças às suas tendências monarquistas à frente do Império, sentenciou: “Todas as desgraças que afligem nossa bela França devem ser atribuídas à ideologia, essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutilezas as causas primeiras, quer fundar sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do coração humano e às lições da história”.

 

Tempos depois, a noção de ideologia voltou a figurar como se imaginou originalmente com Auguste Comte. Mas, mais que o estudo da formação das ideias, o sociólogo também a entendia como o conjunto de ideias de uma determinada época e um corpus instrumental para o presente. Neste sentido, a ideologia poderia servir como um arcabouço teórico que orienta os homens antes de agir, fornecendo uma previsão científica dos acontecimentos. “Saber para prever, prever para prover” era outro lema dos positivistas, além de “Ordem e Progresso”. Segundo Comte, aliás, só há “progresso” se antes houver “ordem”. E só há “ordem” se a prática estiver subordinada a este conhecimento científico teórico do real.

 

No capítulo II de Regras para o Método Sociológico, Émile Durkheim refere-se à ideologia como tudo aquilo que não respeita os critérios da objetividade científica, sobretudo a separação entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Durkheim dizia que a ideologia era a sobra de ideias obsoletas, pré-científicas, subjetivas e até mesmo vulgares.

 

Mas é em Karl Marx que o termo ideologia torna-se objeto de uma profunda reflexão que procurou desvendar os mistérios daquilo que, quase um século depois, Gramsci chamou de “hegemonia”. Para o cientista político italiano, uma classe social não é hegemônica somente porque detém os meios de produção e o controle do Estado, mas porque tem os seus valores como dominantes.

 

Quando pensou a organização social do seu tempo, o auge do desenvolvimento tecnológico oitocentista, Karl Marx chegou à conclusão de que a compreensão sobre as coisas não se encerra nas superfícies visíveis, mas nas estruturas por elas escondidas. E a isso deu o nome de Materialismo Histórico. Por definição, o materialista histórico é o pesquisador que procura desvendar os mistérios do seu ou de outros tempos através de uma operação que escava as aparências para o encontro daquilo que Marx denominou de infraestrutura, ou seja, tudo aquilo que está relacionado, de alguma forma, à produção de bens.

 

Direito, política, cultura e qualquer coisa além disso estão na superestrutura. E muito embora infra e super não sejam a mesma coisa, estão umbilicalmente relacionadas a partir de um importante determinismo protagonizado pela primeira. Segundo Marx, são os processos econômicos formados pelos modos de produção que originam os valores que por sua vez os sustentam a partir daí, criando o efeito de que as consequências dos processos produtivos dos homens seriam, na verdade, a sua origem.

 

Esse argumento é formulado primeiro em A Ideologia Alemã e, depois, em Contribuição à Crítica da Economia Política. Interessava a Marx particularmente o potencial sistematizador dos ideólogos do seu tempo diante da ascensão burguesa civilizatória que convertia as ilusões da classe dominante em representações coletivas e justificava, ao mesmo tempo, as brutais desigualdades do sistema capitalista e o empreendimento neocolonialista sobre os continentes africano e asiático.

 

Ideologia é isso. Um valor que perpassa as diferentes classes sociais, aliena os sujeitos do seu protagonismo e naturaliza condições que, na verdade, foram historicamente construídas. É o que explica a submissão do homem ao trabalho industrial: injusto, degradante, objetificante. Mas, antes disso, algo o sustenta e precede as suas condições: “o trabalho dignifica o homem” é o axioma que habita a sociedade como um todo, apesar de favorecer somente uma pequena parcela dela. Sob a roupagem da Moral ou do Direito, a ideologia garante, junto ao Estado, os valores que mantêm a dominação como algo justo e compreensível.

 

Durante a Guerra Fria, a partir dos anos 1950, a “ideologia” habitou o imaginário ocidental como algo perverso e, no limite, subversivo. Confundida com as utopias, a ideologia passou a caracterizar o “perigo vermelho” que vinha do lado de lá do Muro de Berlim. Joseph McCarthy, senador republicano por Wisconsin, virou referência mundial na caça aos propagadores da “ideologia comunista” nos EUA.

 

Verdade seja dita, os próprios movimentos de resistência e contestação do período passaram a utilizar o termo como referência para denominar quaisquer forças contrassistêmicas. Foi o que levou Michel Foucault a rejeitá-lo, por considerar “ideologia” algo abstrato demais para definir a oposição ao poder.

 

Mais de meio século depois de McCarthy, a ideologia retornou como um novo fantasma que assombra não apenas a paranoia anticomunista, até agora não completamente sepultada mesmo com a derrocada da União Soviética, mas a rejeição às conquistas sociais de grupos minoritários não privilegiados pelo socialismo tradicional, como negros, mulheres, homo e transexuais. Nas aparências, o racismo e a pobreza, por exemplo, são um problema grave, o que não impede que a negação à política de cotas e a programas como o Bolsa Família tenha peso significativo numa sociedade fundamentalmente meritocrática.

 

Acontece mais ou menos o mesmo com a homofobia. Muito embora não se reconheça como homofóbico, o brasileiro busca na “ideologia” um recurso retórico que desnaturaliza práticas não-hétero para deslegitimá-las. Vem daí a velha prática argumentativa do sujeito que não é homofóbico, mas… Mas distribuir cartilhas sobre o tema na escola, não. Mas andar de mãos dadas na rua, não. Mas casamento, não. E por quê? Porque é “ideologia”. Porque é contra “a ordem natural das coisas”.

 

Sob essa máscara de uma ciência moral, a homofobia passa tranquilamente pelo espaço público sem ser notada e a artimanha da ideologização torna-se quase uma compulsão. Cairiam de costas os indignados com a “ascensão da ideologia”, seja ela de gênero ou de raça, se soubessem que o seu discurso é, a rigor e por excelência, ideológico.

 

Por fim, nem De Tracy, Comte, Durkheim ou Marx. No neomacartismo do século XXI, a ideologia tornou-se apenas um delírio que esconde os mais íntimos preconceitos alimentados pela intolerância antiprogressista que já não cabe mais no recalque.

 

* Murilo Cleto é historiador

 

Fonte: Carta Capital

 

 

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