Voto facultativo já é realidade no Brasil, dizem especialistas

Deputados mantiveram nesta terça-feira a obrigatoriedade do comparecimento nas urnas

POR CÁSSIO BRUNO, LETICIA FERNANDES E MARLEN COUTO

RIO – A discussão sobre fim do voto obrigatório no Brasil ainda provoca polêmica. Apesar de os deputados terem mantido nesta terça-feira a obrigatoriedade do comparecimento nas urnas, especialistas ouvidos pelo GLOBO tratam o tema com divergência. Segundo eles, na prática, o voto facultativo seria uma realidade, pois a abstenção sem justificativa significativa ou a partir do pagamento de multa, por exemplo, flexibiliza o processo de decisão política.

– A obrigatoriedade não é institucionalmente sólida, nunca foi durante a democracia. É o fato de não estar no local de votação que justifica o não comparecimento. Não é o motivo em si, e a multa é irrisória. É parte da hipocrisia do atual sistema — afirma Júlio Aurélio, pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Para o cientista político, após quase 30 anos de retomada da democracia, “chegou a hora do voto facultativo” e já houve tempo suficiente para o aprendizado proporcionado pelo voto obrigatório. Neste sentido, as manifestações de junho de 2013 e as que ocorreram em março e abril deste ano, movidas pela insatisfação generalizada com a classe política, indicam que uma cultura cívica começou a ser construída.

– Existe hoje um ativismo ético, social e político na sociedade, que não vem de nenhum partido. É o sintoma de que a sociedade brasileira está madura – conclui Aurélio.

O Brasil é um dos 31 países em que há obrigatoriedade de votar, de acordo com o Instituto Internacional para a Democracia. Segundo pesquisa divulgada pelo DataSenado na última terça-feira e que ouviu 1.100 entrevistados em todo o país, a maioria dos brasileiros, cerca de 70%, defende o fim do voto compulsório. O número é ainda mais expressivo entre aqueles com maior escolaridade e renda: 73% para os entrevistados com ensino superior e 77% para aqueles com mais de 10 salários mínimos. Na contramão estão os mais jovens: 58% dos que têm entre 16 e 19 anos preferem a obrigatoriedade.

Para Carlos Pereira, professor titular da Ebape/FGV, a não obrigatoriedade de comparecimento nas urnas beneficiaria candidatos que recebem os chamados “votos de opinão”, ou seja, eleitores com maior grau de escolaridade e com engajamento político. Segundo ele, o voto facultativo estimula a democracia.

– Quando o voto é facultativo, o eleitor ganha a liberdade de decidir, o aproxima da democracia com a participação ou não. Estimula a participação consciente no jogo político – afirmou Pereira.

Para Felipe Borba, professor de ciência política da UniRio, o voto obrigatório tem um poder pedagógico sobre a sociedade brasileira, de forçá-la a pensar as questões da política de dois em dois anos.

– O voto obrigatório tem um sentido pedagógico. A eleição nesse sentido força as pessoas a pensarem, e perderia um pouco a sociedade brasileira (caso acabasse o voto obrigatório).

Segundo ele, se o voto facultativo fosse aprovado, aumentariam ainda os esforços das campanhas para fazer com que o eleitor compareça às urnas:

– Aumentaria o esforço das campanhas, na verdade são dois esforços, um de mobilização, de fazer o eleitor sair de casa para votar, e o outro, fazer ele votar em você. Com isso, as campanhas teriam um esforço adicional. Elas teriam que estimular a participação. Nos Estados Unidos, por exemplo, têm estudos que mostram que o tom das campanhas influencia a participação eleitoral.

Borba criticou a forma como o pacote da reforma política está sendo votado no Congresso, sem levar isso a um debate com a sociedade, no “afogadilho”:

– Acho que esses legisladores estão fazendo acordos sem ter noção do que estão fazendo. Leonardo Picciani, Eduardo Cunha e outros não estão levando isso para debate, estão fazendo isso no afogadilho.

O professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio Ricardo Ismael também destaca a penalidade branda para quem não vota. A multa varia entre R$ 1,06 e R$ 3,51 e pode ser multiplicada por até 10, dependendo da condição econômica do eleitor. Ismael chama atenção para o índice de abstenções nas eleições e afirma que hoje parte da população já se ausenta da decisão. No segundo turno das eleições de 2014, 21,09% dos eleitores não compareceram às urnas, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), valor próximo ao dos índices históricos.

– Há o risco, como acontece em outros países, de aumentarem as abstenções. No médio e longo prazo talvez a abstenção não seja muito alta, tende a variar dependendo da eleição. O eleitor se envolve quando percebe que a escolha pode ter influência na sua vida.

Embora defenda que o voto facultativo está estabelecido na dinâmica do sistema político brasileiro, Vânia Aieta, professora de direito eleitoral da Uerj, acredita que a obrigatoriedade mal ou bem é a que melhor atende a realidade nacional.

– O voto é o mínimo de participação política. Numa perspectiva pessoal do eleitor, ele tem a opção do voto nulo. Acredito que o comparecimento deve ser obrigatório. O eleitor não pode ser esse sujeito passivo. Ao ser cidadão, participa do processo político querendo ou não. É muito fácil deixar tudo na conta dos governantes. Esse processo contínuo tem que ser uma construção coletiva – opina Aieta.

Júlio Aurélio, da Fundação Casa de Rui Barbosa, lembra que as experiências estrangeiras indicam o risco de eleição com pouca representatividade, mas defende que haveria maior qualidade de representação.

– Nos EUA, isso já aconteceu nas eleições para Presidência. O Ronald Reagan chegou a ser eleito pela minoria, por exemplo, mas o voto obrigatório também tem o risco de produzir maioria de barro, precária. Votar é confiar, exercer mandato é retribuir a confiança recebida, o que fica mais claro no voto facultativo. Os candidatos terão que conquistar a confiança e apostar menos na boca de urna – ressalta o pesquisador.

Para a professora de Direito Eleitoral da Uerj Vânia Aieta, contudo, vivemos um momento de descrédito com a política e a não obrigatoriedade pode levar à menor participação do eleitorado.

– Tenho um pouco de preocupação porque penso que, no contexto em que estamos vivendo, seria um desestímulo à participação política. As pessoas estão enfadadas em relação ao que é oferecido e tendem a recuar da política com a conjuntura desfavorável, mas na politica não existe espaço vazio.

O cientista político Ricardo Isamael, da PUC-Rio, também acredita que a desconfiança com a política pode levar os eleitores a não participarem das votações.

– A desvantagem de fato é que no momento em que há desconfiança se pode ampliar a alienção e o afastamemto da política. Ao mesmo tempo, se você quer mudar as políticas, você tem que participar e votar melhor. O desejo de renovação exige envolvimento.

Fonte: O Globo

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