O Dia Internacional das Mulheres Negras e as Células Imortais de Henrietta Lacks

*Artigo de Márcia Ferreira

Neste dia tão poderosamente emblemático fiquei pensando numa dessas mulheres negras tão poderosas, por quem tenho especial deferência e que me salvou muitas vezes de contrair moléstias infantis e que ainda continua salvando muitas vidas a mais de 60 anos, falo de Henrietta Lacks, uma mulher que viveu entre os anos de 1920 e 1950, nos Estados Unidos, vítima do abuso de seu corpo em nome da produção científica.

Henrietta como tantas mulheres brasileiras, pobres e invisíveis, perdera a mãe quando tinha apenas quatro anos, sendo abandonada por seu pai, junto com seus nove irmãos, que quase imediatamente, foram distribuídos, e Henrietta, foi morar com seu avô materno, onde levava uma vida dura e comum num bairro negro. Aos 14 anos como quase todas as meninas de sua época e condição econômica, engravidou do seu primeiro filho e pouco antes de sua gravidez final aos 31 anos, Henrietta começou a sentir muitas dores e depois de dar a luz ao seu sexto filho foi buscar ajuda no único hospital que cuidava de negros em Baltimore, onde rapidamente foi diagnosticada com um tipo agressivo de câncer, sem muito que fazer com esta patologia, foi prescrito tratamento por radiação. No entanto, antes da terapia, na ala para pacientes “de cor”, um cirurgião tomou duas amostras de seu colo, uma de tecido saudável, outra de tecido canceroso, procedimento este invasivo e rotineiro de doação compulsória de tecidos para pesquisa científica do câncer, a ordem era cultivar as células em laboratório e estudá-las posteriormente.

Células de mulheres negras doentes, sem recursos e submissas ao poder médico na ingênua busca de cura. O material biológico retirado dessas mulheres era o justo pagamento pelo tratamento gratuito que recebiam do hospital.

Apesar da radiação e das constantes coletas de material, Henrietta não resiste e em pouco tempo falece, mas inexplicavelmente no laboratório da Universidade de pesquisa, suas células resistem, não só sobrevivem como se multiplicam assustadoramente, como se toda força daquela mulher, estivesse num único tubo de ensaio, é a origem da primeira linhagem imortal de células humanas.

As células HeLa (abreviação de Henrietta Lacks) ainda hoje é o tema central de muitos debates da bioética, de direitos humanos, da utilização desonesta de cobaias humanas para finalidade científicas sobre o manto absoluto da cura, da cosmética e das indústrias farmacêuticas que agem pelo pseudo bem estar social. É a posse insensível do corpo humano em favor da cientificidade biomédica.

Sem lei e sem normas regulamentadoras de pesquisa em biociências, as células HeLa foi distribuída, vendida e produzida em escala industrial o que possibilitou o uso dessa linhagem nos mais variados estudos, como para entender as infecções pelo HIV, sarampo, poliomielite, produção de vacinas, descrever os 46 cromossomos humanos, testar produtos cosméticos e farmacêuticos, sem esquecer que as células imortais viajou ao espaço para experiências sob gravidade zero, efeitos da radiação e mapeamento genético para fertilização in vitro, a lista é longa em relação ao curto tempo de vida que teve Henrietta Lacks, e ao total desrespeito ao seu corpo e a sua dor.

Cerca de seis trilhões de células eram produzidas semanalmente pela fábrica localizada no estado do Alabama e enviadas para diferentes centros espalhados pelo mundo. As células se tornaram imortais, e enriqueceu alguns grupos, e mesmo assim, a contribuição da mulher pobre e negra para ciência, passou despercebida, e até hoje a família Lacks não têm nenhum direito sobre as HeLas, nunca puderam sequer decidir sobre a utilização das células, que ainda é palco de uma extensa contenda judicial.

Em tempo de tantas intolerâncias, de racismos nefastos, de feminicídios e de abusos contra a mulher, nesse dia especial das grandes mulheres negras que fizeram história, meus reflexivos pensamentos e saudações a esta mulher forte que ultrapassou o tempo, a matéria, as ciências com todo seu lado obscuro, e que ainda vive em cada um de nós nos curando de tantas moléstias.

A mulher negra e pobre que mudou o mundo para sempre e jamais foi reconhecida.

Henrietta Lacks, presente!

 

*Márcia Ferreira é vice-presidente do SINFA-RJ.

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