Depois da Nova República

A saída à altura da crise atual passa por uma Assembleia Constituinte extraparlamentar

por VLADIMIR SAFATLE

Há certo tempo, tenho insistido com os leitores desta Carta que considerem a hipótese de estarmos, neste momento, assistindo a um esgotamento profundo do ciclo histórico que costumamos chamar de “Nova República”. Gostaria de voltar a esse ponto a fim de discutir o que pode aparecer como alternativa a tal situação, além de tentar aprofundar alguns pontos já apresentados.

Lembraria, inicialmente, que o esgotamento da Nova República não significou o fim de um ciclo relativamente bem-sucedido de redemocratização. Na verdade, não vimos nestes 30 anos um processo gradual de aprofundamento democrático, mas uma confissão impotente do aprisionamento da política brasileira nos mesmos limites estreitos da governabilidade, com os mesmos atores vindos da ditadura e a mesma massa fisiológica. Agora, vemos essa massa, capitaneada pelos indiciados Eduardo Cunha e Renan Calheiros, tentar impor ao País um “parlamentarismo de espoliação”, no qual o Congresso se aproveita da fraqueza do executivo para encher o caixa dos partidos de fundos ampliados, chantagear o governo a partir de interesses locais, oferecer viagens gratuitas para mulheres de deputados, dar a cada parlamentar seu quinhão intocado de ementas, aprovar uma reforma política que apenas reforça as distorções do sistema brasileiro e, de quebra, jogar nas mãos da sanha fundamentalista da bancada evangélica o destino de todas as pautas de modernização social. Difícil imaginar terceiro ato mais miserável.

O governo Lula representou o máximo do que se podia fazer no interior dos limites da Nova República. Mas criou-se um sistema de expectativas que ele próprio não se demonstrou capaz de realizar, jogando o País em uma profunda “frustração relativa”, como dizia Tocqueville. O aprofundamento das políticas de combate à desigualdade exigiria livrar-se do sistema de freios que a Nova República construiu. Mas para isso seria necessário ir em direção a outros modelos de processo político nos quais a densidade da participação popular fosse a mola propulsora. Nossa miséria econômica é derivada da miséria política. Modificar tal miséria poderia ter aproximado largas parcelas da população hoje afastadas por governo por perceber nele, atualmente, simplesmente uma associação que visa à própria autoperpetuação.

Não há como negligenciar o fato de que um elemento fundamental no afastamento de vários setores da sociedade em relação ao governo foi a corrupção e isso está longe de ser uma “pauta de direita”. Um pouco de virtude jacobina faria bem neste momento. De toda forma, a naturalização de práticas de corrupção (como vemos hoje, os casos na Petrobras continuaram mesmo durante o trauma do “mensalão”, o que demonstra uma resiliência profunda) foi a conse-
quência natural da incapacidade de pensar, defender e realmente acreditar em novas formas de processos políticos. No entanto, novas formas existem e elas passam pela pulverização de mecanismos de democracia direta sob a forma de conselhos, plebiscitos, pela quebra do monopólio da representação eleitoral por partidos, pela democratização do Judiciário e pelo enfraquecimento dos poderes Executivos e Legislativo em direção a processos de participação popular.

Que a pulverização da democracia direta não necessariamente nos levaria à hegemonia popular de uma política de esquerda, isso pouco importa (sei bem o que estou escrevendo). O que importa é a criação de novas dinâmicas políticas para abrir possibilidades não exploradas, permitir a constituição de novos atores e retirar a política dos bastidores para as ruas. Ela cria ainda uma lógica de conflitos não viciada pela profissionalização da política e seus arranjos de bastidores. O principal sentimento da esquerda é a confiança no povo, e é impressionante como ele falta a muitos de nós atualmente.

Por isso, a única saída realmente à altura da crise atual passa pela convocação de uma Assembleia Constituinte extraparlamentar com eleições gerais posteriores. Não faz sentido algum lutar por uma reforma política feita por um Congresso que é parte do problema, e não da solução; nem lutar por um impeachment que consiste basicamente em trocar o presidente para que os velhos operadores de sempre continuem a trabalhar em paz. Nem faz sentido defender um governo que escolheu caminhar longe das forças que o elegeram. Precisamos apelar ao grau zero da representação e abrir novas possibilidades por meio de uma força extraparlamentar. Toda outra solução será apenas perpetuar uma lógica de sobrevivência. Mas o País merece mais do que sobreviver

Fonte: Carta Capital

 

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