CONHECER O PROBLEMA OU VIVENCIAR A DOR: QUAL É O SEU LUGAR DE FALA?

Recentemente, numa conversa sobre racismo, fui abordada com o seguinte questionamento: o que você já sofreu de racismo? E a resposta foi: nada, pelo menos, não diretamente, mas já presenciei já me comovi e já fui tomada por uma irritação situacional, mas na minha pele mesmo, em mim, no meu cotidiano e existência, eu só sei falar do problema. Então, como eu poderia estar nesse “lugar de fala” se não carrego a marca dessa dor?

O “lugar de fala” é uma expressão que vem sendo muito utilizada em discursos da militância de representação de minorias, não tem um surgimento preciso, a maioria dos pesquisadores apontam para um movimento feminista por volta de 1980, nos EUA e, posteriormente, sobre duas questões que deslancharam dessa temática: pode o subalterno falar? Da escritora indiana Spivak, no sentido de permissão para falar e se esse subalterno pode, no sentido de saber e ser capaz de falar ou, ainda, ante a possibilidade de um subalterno falar mesmo sem poder. E a outra reflexão vem de um professor da USP, Ortellado, na problemática de se falar pelo outro, por aquele sujeito de direito, protagonista da própria luta que sofre o abuso ou o preconceito, mas não tem espaço ou diálogo.

As dores, no geral, são relacionais e, para que ela tenha voz, há que se ter uma escuta e reconhecer o seu lugar democrático e político e, só então, desse lugar, poder falar. Pelo menos é assim que os grupos têm se colocado quando da abertura de espaços políticos e de exposição.

Na prática, o conceito tem ajudado na compreensão de como nossa fala se segue na ordem do discurso e como este discursar marca as relações de poder e reproduz, ainda que sutilmente e não intencionalmente, o racismo, o machismo, a homofobia e tudo o que sofrem os grupos que buscam o fim da mediação. É um mecanismo produtivo de voz na contramão do silenciamento dessas minorias sociais no impasse com grupos privilegiados de fala nos espaços públicos e acadêmicos. Este instrumento foi sendo apropriado por aqueles que, historicamente, têm menos espaços e são constrangidos de falar por si.

Essa apropriação do termo “lugar de fala”, de um modo bem ampliado, tem sido ferramenta potente nos debates identitários como posicionamento do lugar do diferente, de marcar estratégia política e de dar visibilidade para quem sente a dor e conhece dela para reivindicar políticas públicas a quem de direito e a concessão de espaço de luta para as questões que lhes são afetas.

Não há dúvidas, que aquele que protagoniza qualquer situação possui cabedal para dela discorrer com propriedade, isto não quer dizer que quem estudou, pesquisou, se dedicou ao assunto, não reúna condições de se exprimir ou opinar sobre questões que, socialmente, dizem respeito a todos, aliás, o lugar de fala precisa da empatia para sensibilizar o público que escuta e nele produzir motivos para o engajamento no movimento. Mas, é preciso caminhar pelo “entre” abrindo caminhos não polarizados, fluindo para além do binarismo racional ou correremos o risco de sairmos de um polo da opressão para cair noutro.

É preciso que reinventemos corpos, que reinventemos a vida, que criemos espaços de fala e de reflexões que nos possibilitem ampliar os discursos sem sermos capturados por um gancho qualquer do saber-poder e sofrer da atrofia da naturalização social.

Assim é que, nesse ativismo político pós-moderno, precisamos estar sempre muito atentos para que, na tentativa de termos voz, e de reivindicarmos o nosso lugar de fala, não fiquemos engessados em posicionamentos inflexíveis de achar que só pode falar da dor aquele que a experimentou em seu modo mais cruel de existir, sem com isso, abrir brechas para as reflexões da mudança.

*Márcia Ferreira é vice-presidente do SINFA-RJ.

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