A MORTIFICAÇÃO DOS CORPOS NEGROS E A DEMOCRACIA RACIAL

Em recente manifestação pública na declaração dada pela atriz Taís Araújo no evento TEDXSÃOPAULO onde discorreu pelo temor que sente sobre seu filho de seis anos de idade ser uma potencial vítima da truculência contra negros, me veio à lembrança duas situações: a primeira uma música, “Strange fruit” interpretada na contundente bela voz de Billie Holiday (as árvores do sul carregam frutos estranhos, corpos negros balançando na brisa do sul, frutos estranhos pendurados nas árvores de álamo…) e a segunda um documentário que vi há a algum tempo atrás em que a cena que remete, é o início do ano letivo, uma menina de seis anos (a mesma idade do filho da atriz) aprontando-se para ir à aula, tudo é novidade, sua mãe foi convencida a trocá-la de escola (a menina estaria acima da média) e demais agora ela iria alfabetizar-se, a expectativa era grande, embora, seja uma situação bem corriqueira na vida de qualquer criança, muitas perguntas passavam pela cabeça. O que vestir? Como serão a professora e os amigos? É um momento ímpar, tudo seria cotidianesco se não fosse pela escolta de quatro policiais federais para acompanhá-la. Era novembro de 1960 em New Orleans (EUA) e Ruby Bridges foi a única criança negra a ter aula naquele dia e nos demais que se seguiram. Ela foi agredida verbalmente e ameaçada pelas mães brancas, pelas crianças brancas e pelos funcionários brancos. Não podia comer nada na escola por razões de possível envenamento. Esse caso tomou as manchetes dos jornais e revistas naquele país de ano atípico com o fim das escolas caucasianas no sul. Os anos se passaram e hoje Ruby é uma Sra. ativista que percorre o mundo com sua história em prol do movimento negro contra a segregação racial, e em celebração aquele dia de inicio escolar, foi feito  uma tela a óleo que hoje figura no acervo da Casa Branca, um marco político com muitos desenrolar-se e muitos enrolar-se de um racismo cru, onde é preciso que o povo se conheça, para que se veja como capaz de realizações grandiosas.

O que percebo daquele dia para cá é que quase nada mudou, pois as mães de crianças negras ainda padecem da mesma angústia, sejam elas do Mississipi ou do Rio de Janeiro. E não é medo infundado ou vitimização, é a concretude da mortificação dos corpos negros ainda nos tempos de hoje, não mais dependurados em álamos, nem amarrados ao tronco a mercê da ponta da chibata, é mortificado nos guetos, presídios e manicômios judiciais, é nossa história, e é tudo o que se potencializou em nome da modernização do Estado, da purificação da cultura, e a impressão que tenho é que estamos ainda parados no mesmo lugar.

O contexto político e social da sociedade brasileira e do mundo na década de 1930 é fundamental para compreensão das teorias racistas. O país vivia um processo de identidade nacional em um cenário que predominava, tanto no plano nacional quanto no internacional, um ideário racista e de branqueamento (a ascensão do Nazismo é uma das tentativas de concretizar esse ideário). Já o período pós-escravatura foi marcado pela mobilização dos negros, resultando em organismos como a Frente Negra Brasileira, que chegou até a ser reconhecida como partido político, em 1936. Com esta diversidade de causas, a ideia racista cumpre uma função institucional de naturalização, de silenciamento e de violência propagada desde o período da escravidão. A posição senhor/escravo não poderia ser mais evocada para cristalizar a inferioridade da população negra no Brasil.

Co-emergindo neste período, aparece o conceito de democracia racial surgida com a publicação do livro Casa-Grande e Senzala de Gilberto Freyre, este instituto passa a ser adotado pelo sociólogo em publicações posteriores, e suas teorias alargam uma trilha para a popularização dessa ideia. No entanto, muitos irão se opor à este conceito da democracia racial, afirmando ser ela um mito,  base de alegação genérica diante da impossibilidade de se definir com exatidão à qual raça uma pessoa pertença realmente, onde nem mesmo os próprios indivíduos são capazes de se definir. O uso aparentemente paradoxal do binômio “democracia racial” visa obscurecer a realidade do racismo e tem sido apropriado como escopo do “preconceito de não ter preconceitos”, em que o Estado assume a ausência de preconceito racial, não fazendo cumprir as leis existentes para combater a discriminação racial, pois acredita que tais esforços sejam desnecessários, e o cidadão num complacente autoengano, se vangloria de viver num país que não discrimina sexo, religião ou cor.

No Brasil, do período do Estado Novo (1937/1946), foi este o modelo político racial que se consolidou, advindo das teorias racistas em que negros, mulatos, judeus e japoneses eram considerados perigosos, do mesmo modo que os anarquistas, comunistas, malandros e baderneiros. Ideias fascistas e nazistas passam a configurar a ideologia brasileira de raça, mostrando que o povo branco tem um biotipo de presunção de homem honesto, de bem e trabalhador, diferentemente do estigma imposto e naturalizado nos negros de que eram preguiçosos, indolentes, sujos e indisciplinados.

É obvio que não parou por aí, e nem por aqui em terra “brasilis”, foi um sucedâneo de movimentos, grupos e lideranças negras em que as teorias raciais tiveram um papel importantíssimo para legitimar hierarquias sociais num mundo em que o liberalismo adentrava como produto de importação política. Tornar natural a organização social extremamente desigual na qual se encontrava a sociedade brasileira, era bem apropriado à identidade nacionalista, enquanto os efeitos colaterais do racismo institucional aumentavam práticas que transgrediam leis e violavam direitos humanos e isto, parecia não causar indignação.

No Brasil de hoje, o percentual populacional de negros é maioria e, mesmo assim, o que vemos ainda é que eles permanecem excluídos de postos e processos de decisão, é de longe o maior contingente carcerário, crianças negras são estereotipadas e diagnosticas com transtornos de aprendizagem (crianças que não aprendem e fracasso escolar) são vítimas de genocídio perene e banalizado, fixam residências em favelas e periferias em condições subumanas (eufemisticamente chamadas de comunidades); pessoas a quem o acesso ao serviço público é péssimo e que diariamente, são agredidas pelo estado de penúria longe de ações governamentais positivas e, sempre que se insurgem com reivindicações nesse sentido, o mito da democracia racial é resgatado na tentativa de se neutralizar essas demandas.

Diante desses fatos e constatações históricas, às vezes, me vem a vontade de ter um “oblivium” e renascer num outro momento em que crianças de seis anos não temam correr suadas e de boné pelas ruas ou iniciar-se no ano escolar regular, e que suas mães possam ocupar-se de outras emoções que não a do medo da perda do seu fruto dependurado num galho de álamo qualquer.

Márcia Silva
novembro 29, 2017
Matéria retirada do Blog Visada
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